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EUCLIDES AO REVÉS – Notas sobre o trabalho de Antonio Bokel
Agnaldo Farias
Em uma das pinturas trazidas por Antonio Bokel para essa exposição, tem-se dois círculos pretos com as mesmas dimensões, aplicados sobre um fundo branco, dispostos um ao lado do outro, cuidadosamente emoldurados em madeira, sublinhando os limites do trabalho. Realizado em tinta acrílica num campo de 1 x 2 metros, discretamente dividido em dois –trata-se de um díptico- os círculos estão rigorosamente situados em relação ao meio da tela e às suas extremidades superiores, inferiores e laterais. Tudo nessa pintura levaria a ideia de rigor, para isso o artista lida com a mesma figura geométrica simples, enunciando-as com clareza. Mas não é bem isso o que acontece. Sua metade esquerda, e com ela o círculo esquerdo, foi subdividido, e a parte intermediária, a terça parte da pintura como um todo, atacada por uma força ascensional, foi ligeiramente jogada para cima, desmontando e deslocando o círculo, produzindo dois semicírculos e desalinhando-a do resto. O desnivelamento não é feito de qualquer modo, mas com exatidão: a ponta superior do semicírculo suspendido termina exatamente na moldura de madeira remanescente, enquanto a ponta inferior do semicírculo da esquerda, principia no pedaço levantado da moldura de madeira.
Em uma outra pintura de fundo bege, onde um retângulo preto encaixado diagonalmente numa tela de 1,5 x 2 metros, quase apoiado em um círculo preto encostado no limite inferior da pintura e que está escapando pela lateral direita, recebe o ataque direto de dois triângulos brancos. O maior, arranjado no eixo da pintura, é obtido por um recorte literal feito na pintura, que incorpora a parede fazendo-a invadir e atravessar o retângulo preto até atingir seu ponto médio. Por sua vez, os dois vértices pontiagudos do triângulo menor afrontam o limite esquerdo da tela e o retângulo preto, respectivamente.
Essas duas telas bastariam para demonstrar a segurança com que Bokel lida com os limites da pintura, uma trilha que no nosso país foi mais explicitamente aberta por artistas como Volpi, Lygia Clark, e que ele explora incorporando e ampliando lições deixadas pelos norte-americanos da Hard Edge e os franceses do Supports-Surfaces, decisivos na ruptura do formato quadrangular da pintura, no pensamento da moldura como parte da pintura, entre outros pontos. Nosso artista tem um notável domínio da plasticidade de figuras geométricas elementares, e por meio de operações como recortes, rebatimentos, sobreposições, combinações assimétricas, vai demonstrando tanto em pintura quanto em escultura como todas estão implicadas umas nas outras.
Mas há mais do que isso. Parte dos trabalhos recentes de Antonio Bokel, escolhidos para compor essa exposição, leva a pensar em como seu desejo de rigor e precisão alimenta-se do erro e do desvio calculado, termos diferentes entre si. O artista opera sistematicamente com o desvio, a falha e o desastre. À lógica insofismável da geometria, à segurança e previsibilidade que ela propõe, ele opõe sobressaltos e sombras. O artista adiciona problemas variados em suas pinturas e esculturas, como a contraposição entre formas nítidas e borrões, entre formas produzidas com o auxilio de régua e compasso e manchas resultantes do extravasamento do gesto, desobrigado de elaborar construções, entre produtos da indústria e produtos que resultam de manufatura. Em suma, em seus trabalhos é recorrente a convivência entre vetores divergentes, como os de natureza impulsiva ou de matriz vernacular, tradicional, e outro alinhado à racionalidade.
A tensão entre termos contrários aprofunda-se em outras séries, como as constituídas por pedaços toscos de madeiras encontradas e juntadas em composições assimétricas, recobertos por cores e figuras geométricas que não encobrem a matéria que lhes servem de suporte. Digno de menção a fenda aberta por uma pedra num bloco de madeira pintada de branco com um círculo preto, uma lembrança da natureza interferindo incisivamente nos propósitos humanos.
Babel, escultura de 2 metros de altura, que Bokel realizou em 2015, 5 blocos de cimento irregularmente empilhados em razão das mãos forjadas em bronze em que estão escorados, realça um dos compromissos do artista com o tempo presente, qual seja o intervalo abissal existente entre o que se deseja e sua realização efetiva, entre as edificações gigantescas e reluzentes que arrogantemente pretendem se impor aos horizontes das metrópoles, e o lixo, as lutas e as contradições que, cá embaixo, ameaçam e efetivamente as vão destruindo.
A poesia está no verso – e em todos os outros espaços desta exposição.
Victor Gorgulho
Em sua segunda individual na Matias Brotas Arte Contemporânea, o artista carioca Antonio Bokel apresenta uma série de novas obras, realizadas em sua maioria do último ano para cá. Em conjunto, endossam aquele que talvez seja o aspecto mais marcante de sua produção: sua capacidade singular de trânsito entre suportes dos mais diversos, entre pinturas, esculturas, desenhos, instalações, objetos e demais mídias.
Suspenso no espaço, o trabalho que dá título à mostra, sugere – implacavelmente – o signo que percorrerá quase todas as outras obras da exposição: o vazio, seja ele expresso na ausência formal de uma composição geométrica, seja explícito discursivamente no emprego do texto visual em algumas das obras aqui expostas. É justamente este vazio quem melhor nos conduz por entre o corpo de obras realizadas por Bokel em sua produção recente. Tomado por um ímpeto de investigar o silêncio, o interdito, este precioso intervalo entre um ruído e o outro (som onipresente na esquizofrenia contemporânea de nossos tempos), o artista faz desta busca uma delicada especulação poética, visual e discursiva.
Logo na entrada do espaço, como uma espécie de prólogo da exposição, o visitante irá
deparar-se com “Possibilidade de Infinito”, obra realizada pelo artista ainda em 2017, onde um desenho em grafite de formas esféricas é interrompido por um vasto espaço retangular em branco, no centro da obra. Instaura-se, então, a dúvida: tal desenho resultaria no encontro entre duas esferas que, enlaçadas, formariam o símbolo do infinito? Ou, por vias opostas, tais esferas nem chegariam a encontrar-se, sem formar qualquer ponto de colisão e contato? Uma interseção impossível?
Como em qualquer ato especulativo, a dúvida e a incerteza são, também elas, fiéis escudeiras tanto do fazer artístico de Bokel quanto do espectador de suas obras. Não estamos diante de uma produção que busca estabelecer certezas concretas, verdades inquestionáveis e inequívocas. Na contramão de um mundo de visibilidades extremas e opiniões polarizadas, o gesto artístico aqui reforça justamente o terreno do não-saber, um fértil território da escavação de possibilidades outras de visões de mundo.
Outro aspecto que corrobora tal dimensão é a investigação empreendida pelo artista, desde o início de sua produção, de uma geometria afetiva, quase randômica, distante do cartesianismo e do rigor próprios da tradição construtiva da arte brasileira das décadas de 1960 e 1970, notadamente através das produções concretistas e neoconcretistas.
As formas, aqui, estão suspensas, por vezes errantes, em um delicado equilíbrio de forças que quase não as permite manterem-se erguidas, de pé. Em rota de colisão ou em queda livre, estão a encarar-nos em sua rígida fluidez poética. A poesia está no verso e os sonhos estão despedaçados (ou buscando reconstruírem-se?) dispostos no chão, logo atrás da obra título. Mas a “esperança equilibrista”, força incontestável do gesto artístico de Bokel, permeia cada uma das obras expostas aqui no espaço. A poesia está no verso e também diante de nós, a perfurar nossas retinas e recarregar nossas crenças – na arte e na vida, afinal.
CONTRADIÇÕES GEOMÉTRICAS
Isabel Portella
A obra é, ao mesmo tempo, processo de formação e processo de significado.
Daniel Buren
Antonio Bokel encontrou, nas paisagens urbanas, a geometria além dos grafismos, dos muros e elementos arquitetônicos. Iniciou a partir daí um diálogo bastante produtivo que resultou em desconstruções e ampliação de sentidos, em pontos e contrapontos ao orgânico. Se o geométrico é preciso, regular e previsível por que não procurar a harmonia nas formas assimétricas?
A cor, a linha e os suportes usados em suas obras expressam, por vezes, a rebeldia ao óbvio. Apresentam possibilidades reflexivas diversas, oferecendo ao expectador a experiência das contradições. É estar no mundo com menos rigidez, permitindo que as linhas se enrolem por caminhos inesperados, concedendo-lhes o direito de não seguirem num sentido único, mas mudando de direção apenas porque vale mais a pena. O olhar habituado se surpreenderá com as rupturas, os contrastes e os avessos, mas a intuição entenderá o percurso.
As cores usadas por Bokel são certamente outra conversa. Outro diálogo entre o artista e a paisagem de uma cidade cheia de luz e mar. O azul forte, o preto e o branco – em placas de cor – e a geometria fazem parte da poética desse artista que procura o aperfeiçoamento de sua pesquisa, desconstruindo diversas formas. O planejamento das esculturas, resultante do contato com a geometria, confere dimensões outras que enriquecem a obra de modo contundente.
Quanto mais se afasta do previsível mais instigante se torna a obra de Bokel, que aponta efetivamente para todas as direções possíveis oriundas de suas observações. Nada escapa ao seu olhar atento, urbano e seduzido pela idealidade racional da geometria. Trata-se de dar visibilidade ao conjunto: forma e cor traduzindo a liberdade alcançada pela experiência e intuição.
… para dizer as coisas …
Sonia Salcedo del Castillo I março de 2016
Espaço entre as coisas dá título à mostra de Antonio Bokel, cujo conjunto reunido tem como fio poético a ideia de intervalo – não como mera ausência, mas como elo de ligação entre o circunstancial e o subjetivo. Nele, uma espécie de força nos conduz de um trabalho a outro, feito linha magnética através da qual as obras parecem repercutir, em circularidade, graças a formas e sinais em permanente rearranjo.
Trata-se, aqui, de apresentar a produção mais recente do artista, na qual a urgência da pintura urbana, que caracterizava sua poética, silencia em favor da concentração sobre coisas mundanas. Não por acaso, coisas assumem o papel de imagens e estas, no lugar de palavras, criam conexões, feito poesia a sugerir novos significados ao nosso estar no mundo.
Ora, para se percorrer os espaços entre as coisas é mister atravessar uma ponte. Sim! Uma ponte construída com silêncio. Intervalo através do qual se pode escutar as coisas, como quem medita. Mas vejam, à maneira de Rilke, elas (as coisas) parecem precisar de nós. E talvez estejamos aqui, como afirma o poeta, para dizê-las como jamais pensaram ser. Efêmeras coisas que, “estranhamente, nos solicitam. A nós, os mais efêmeros”.
(Afinal, nós também precisamos delas.)
… casa, árvore, porta, janela, jarro… coisas mundanas que nos alertam sobre instante e perenidade, dados lapsos e ritmos que as separam e igualmente ligam-nas, emprestando-lhes formas – tal qual a música ao silêncio e o vaso ao vazio, como vaticinou Braque. Assim, feito escrita intervalar, escrita de imagens, poesia expandida a nos empoderar ante a finitude.
(Seria esse espaço um tipo de portal?)
Somos tão fugazes… Nossa existência contrasta com nosso desejo pela perenidade… Então, nossa imagem se espelha nas marcas que deixamos… E assim, coisas mundanas, objetos domésticos, edificações (com propósitos que, por vezes, nos escapam) são para Bokel naturezas mudas ou mortas, em que espaços “entre” – ou melhor, vazios – parecem gritar aos nossos olhos, para se fazerem ver e ouvir, na condição de imortalidade.
Em sua feição ingênua, este conjunto de obras assinadas por Antonio Bokel (pinturas sobre papel, tela, madeira e cerâmica) revela sofisticação, tanto na paleta quanto na pesquisa formal, além de vasta experimentação dos materiais. E no entender desta curadoria, indica também ser liminar ao projeto poético do artista.
Sob notável interesse em precursores do Modernismo (como é referencial a produção de Volpi e Matisse), da arte urbana (como é exemplo Basquiat) e da artis-manus (relacionada à arte naïf), suas obras mesclam vocabulários que transitam do grafite citadino à artesania doméstica, tocando em questões filosóficas acerca do sujeito no mundo. Metaforicamente, retratam as coisas, não como meras “naturezas mortas”, mas, sim, como “vidas suspensas”. Vidas oriundas do desejo, de Antonio, de dar voz ao vazio do indizível.
HIERÓGLIFOS CONTEMPORÂNEOS
Daniela Name
“Eu preciso dessas palavras escritas”
Arthur Bispo do Rosário
A relação de Antonio Bokel com as palavras e com o grafite ganha destaque e novos significados nessa primeira individual do artista em Vitória. O que se vê, não apenas no interior da galeria Matias Brotas, mas também na obra que vaza para além do espaço expositivo – na intervenção feita na fachada e nos sampler-lambes espalhados pela cidade – é a afirmação do interesse do artista pela escrita.
Nas cavernas de Lascaux, as primeiras pinturas foram e são simultaneamente arte e comunicação, conjunto de signos gráficos e figurativos que formam uma linguagem a ser decifrada, um vocabulário visual anterior aos alfabetos. Do Brasil à China, da Rússia ao mundo árabe, passando pelos alfabetos grego e esquimó, cada letra guarda em si a memória de uma imagem, que um dia foi desenho a tentar narrar e guardar o mundo para o tempo. As palavras não deixam de ser uma espécie de arquivo fantasmático, da sobrevivência do casamento entre ícones e letras nos ideogramas japoneses aponta para a possibilidade de as palavras também serem uma espécie de paisagem. Um horizonte instável, mas sempre possível, onde vamos buscar indícios sobre uma cultura e uma sociedade.
Bokel começou a mirar esse horizonte a partir de sua relação com o grafite e as intervenções urbanas. Sua pintura tinha, em seus primeiros passos, forte vínculo com a obra de artistas como Jean-Michel Basquiat e Keith Haring. Nada além das palavras apresenta um amadurecimento do artista carioca para além das referências da arte urbana. A escultura Portugal no mundo, em que um galho de bronze perfura o livro que dá nome à peça, é muito emblemática para compreender esses novos caminhos. O galho, referência de paisagem recriada pelo artista, é também uma lança fálica que golpeia e fecunda a enciclopédia, espelho para nossa realidade como nação. No Brasil, o idioma colonizador estuprou as línguas indígenas donas desse país-continente, assim como os dialetos africanos de reis e rainhas capturados e escravizados. Mas o explorador europeu acabou sendo poluído, corrompido e adulterado por aqueles que oprimiu, já que o português falado no Brasil é um ruído do tripé de raças que marca nossa origem, constantemente recombinado com todas as influências que recebe de um mundo globalizado.
Black circuluz, tela tríptico que domina a montagem, fala desses ruídos entre paisagem e grafismos, e de como a luz acobreada dos trópicos pode aquecer e ressignificar o olhar sobre a paisagem e a escrita/discurso que criamos sobre ela. Ecoam nessa pintura todos os trabalhos reunidos em Vitória, um conjunto que, além de destacar a sobreposição entre palavra e imagem – e a leitura do grafite como um hieróglifo contemporâneo – evidencia a capacidade de Bokel de mesclar as várias linguagens artísticas.
Nas telas maiores, quase monumentais, as áreas de monocromia, sobretudo na cor branca, como se vê na pintura Acaso, lembram as máscaras de extênsil usadas para pintar e escrever nos muros da cidade e revelam a presença de um vocabulário de gravura se infiltrando no fazer pictórico. É interessante, ainda, ver como tanto nos trabalhos agigantados quanto nas pequenas pinturas há um arranjo aparentemente randômico entre uma paisagem que parece ter sido feita com carimbos ou com monotipia, áreas de cor e o grafismo. Neste último, há a recorrência dos círculos, elemento que faz da escrita de Bokel algo contínuo, fluido, cíclico e feminino. Ao criar um painel que se estrutura a partir das distinções, pintando como quem faz uma espécie de sampler, Bokel transpõe para seu trabalho um pouco da lógica das cidades, onde cartazes e letreiros se acumulam e se invadem nos muros e se misturam à vegetação, à identidade visual dos ônibus em movimento, às cores dos carros e dos passantes. Essa noção da cidade como um painel de signos efêmeros, em constante reconfiguração, aparece não apenas nas pinturas, mas também nos trabalhos em outros suportes – escultura, fotografia ou gravura.
No conjunto exposto na Matias Brotas, o artista adiciona a alguns desses mosaicos de fragmentos áreas inteiras pintadas de dourado, o que causa estranheza – a melhor das estranhezas – no observador. Cor ancestral para a história da pintura (dos ícones bizantinos a Klimt, passando pelas iluminuras medievais) e da arquitetura (das igrejas barrocas brasileiras aos palácios Ming), o dourado é o brilho mais branco que o branco, tom capaz de criar uma superfície ao mesmo tempo opaca e reflexiva, uma imagem que dura e reverbera na retina, no corpo e na memória de quem vê. Além de toda a sua carga histórica e simbólica, o dourado cria um estado de suspensão, algo como uma paisagem entre parênteses.
Ao optar pelo uso da cor, ora salpicando ouro sobre o branco, ora misturando-o a um vermelho árabe e oriental, Bokel dá à efemeridade um banho daquilo que se alonga e que dura – como símbolo e como estímulo visual. Algo de nossa constante brevidade que pode, quem sabe, roçar no eterno.
CORPO-LIMIAR
É das obras mais instigantes presentes em La Nature d’Or. Um gesto gráfico que se desloca à esquerda de um vértice algo nave, algo edifício, rasgando o céu, em preto e branco, pontuado por nuvens extremamente plásticas. A caneta hidrográfica vai formar um volume por cima desse firmamento, meio informe. Na fotogravura feita a posteriori, o tom cinza predominará, mas na matriz-publicação que deu origem ao trabalho, o papel colado, marcado com a intervenção-gesto junto a outros acidentes, gera uma dimensão processual que termina por se estabelecer como um dos eixos potentes na nova individual de Antonio Bokel, no Rio de Janeiro.
A robusta obra arquitetônica de Kenzo Tange (1913-2005), que tanto rendeu delírios maravilhosos e utópicos influenciando o agrupamento dos metabolistas como foi elogiada por trazer a tradição construtiva do país oriental a uma modernidade de primeira hora, parece despedaçar-se, desmanchar-se e buscar uma reconstituição a partir da subjetividade hiperfragmentada do autor, que cotidianamente no seu fazer de ateliê se reinventa por meio de linguagens, investigações, abordagens, materiais. O Ginásio Nacional Yoyogi, então, se encontra com o ‘minhocão’ do Rio Comprido.
Como habitante de uma cidade ao mesmo tempo cindida e compartilhada, o artista carioca deixou faz muito um lado mais conhecido de sua produção, aquele em que grafismos e outros procedimentos o aproximavam mais da linguagem da arte da rua. Não à toa, em uma de suas mais irônicas obras, o centro da fotografia registrava o escrito numa parede qualquer: Eu não faço grafite.
De toda forma, a vivência dentro desse lócus complexo vai provocar experiências e desdobramentos de incertas determinações, mas que, ao final, forjam uma poética crispada e não linear. “A experiência urbana é primeiramente corporal. […] O corpo resiste enquanto corpo, ele não se pode furtar a uma relação com o real, com um mundo: ele não pode viver em um real que se parece com ‘qualquer coisa’, em um lugar que é ‘qualquer lugar’, um ‘lugar qualquer’. Não se habita um lugar qualquer, mas um mundo onde, de imediato, dentro e fora, privado e público, interior e exterior estão em ressonância. É preciso ‘ter lugar para existir’ […]”1, escreve Olivier Mongin.
Em La Nature d’Or, assim, Bokel persiste na lida diária de variadas experimentações. Há, por exemplo, um video em que os anteriores escritos de sua produção serão transmutados para perguntas, sempre com ironia, sobre a natureza do ofício artístico. É como se o artista extraísse de garatujas, chispas semânticas e outros signos urbanos uma certa energia, frescor e irreverência, mas retrabalhasse isso por um tempo mais dilatado e devolvesse tal carga por meio outro – no caso, o audiovisual, hoje onipresente e acessível a todos. A imagem de uma natureza encorpada, inicialmente apreendida como impassível, mas na verdade um sítio de contínua transmutação, provoca uma ruidosa recepção a ser apresentada juntamente com as questões trazidas, em forma de legenda, pelo pensamento do autor.
E numa era de circulação maximizada de quase tudo que pudermos imaginar, o artista elege novos vetores na produção pictórica – esta nunca pura, em constante elo com o desenho, o tridimensional, a colagem, a gravura. Um deles é a superfície da madeira naval, a mais sóbria e ‘isenta’ possível. Outro é o dourado, que pontuará diversas peças em La Nature d’Or e se espalhará de modos mais detidos ou desregrados por todo o recorte.
Em muitos dos dípticos, trípticos e conjuntos, módulos de conteúdos aparentemente assimétricos se ladearão, ganharão pares e associações numerosas. Campos de cor, chassis ‘alisados’, rastros de spray e linhas que emulam os antigos desenhos técnicos criam, assim, novas configurações visuais-conceituais de borradas especificações. Tais quais as fantasmagorias brilhantes que, enigmaticamente, parecem ter se instalado nos priscos retratos de astros hollywoodianos. O brilho (ou a ilusão de) pode fazer um bom par com a outra série, desta vez produzida por Bokel a partir do Instagram. Lumes postiços que, catalisados pela prática multifacetada do artista, podem, sim, dizer muito sobre a nossa essência, mesmo que ela esteja sobreposta, esgarçada, dividida.
1. MONGIN, Olivier. A Condição Urbana. São Paulo, Estação Liberdade, 2009, p. 242
Mario Gioia
TUDO QUE ESTÁ COBERTO
Paulo Galinna
Ao se refletir sobre o universo das artes sempre se está pensando em imagens, com frequência, entretanto, confunde-se uma obra de arte com a superfície da imagem. Talvez nas produções artísticas literárias ou musicais a relação entre a forma apresentada e o conteúdo discorrido não se reportem tanto às imagens sobre o papel. Com a produção em artes plásticas, no entanto, a imagem é reiteradamente tomada como sinônimo da superfície visível. Uma conclusão razoavelmente lógica, ainda que se revele como falsa no contexto da pesquisa e produção do artista carioca Antonio Bokel.
As pinturas de Antonio revelam prontamente ao olho um interesse gestual, como se linha a linha, campo de cor a campo de cor, o artista registrasse movimentos sem preocupar-se exatamente com a imagem resultante. Porque a imagem, neste caso, é o registro gestual e não a desculpa para o gesto acontecer. O conjunto de pinturas RIR (2017) é revelador deste momento da pesquisa de Antonio: ao intercalar telas de linho e algodão, o artista também aproxima e sobrepõe a gestualidade livre à dureza de formas geométricas lineares preenchidas por negrume. Quase que naturalmente, Antonio revela ao observador como ambas as atitudes são formadas pelos mesmos pincéis, sprays, espátulas e dedos que depositam as tintas. As cores são camadas cobrindo as superfícies, fingindo-se de formas geométricas sem a pretensão de aproximar-se da matemática analítica capaz de conceber e calcular os perímetros e as áreas. Isso porque a matemática é apenas uma uma forma mental de se abordar o mundo, conquanto o conjunto dos painéis RIR promove uma experiência a ser explorada enquanto momento fora do tempo: sem passado e sem futuro, o artista exige do observador que ele exista e note a existência da matéria posta à vista.
Não por acaso, em algumas das pinturas presentes nesta exposição, a superfície das telas, dos linhos, dos algodões e das chapas de madeira revelam-se expostas ao olhar, sem mesura ou tratamento. Esse procedimento insinua um pensamento amplo sobre o fazer do pintor: o suporte está dado assim como a cor, a linha e a imagem. Essas imagens não se permitem ser a simples ilusão de um retrato ou paisagem a ser reconhecido, pelo contrário, nas mãos de Antonio Bokel a pintura é matéria visível e cotidiana que retrata a narrativa dos dias sem marcar o presente no segundo milênio ou no terceiro da era cristã. A pesquisa que explora o gesto e seu registro em linha ou superfície colorida relaciona estes vestígios ao suporte que os recebe, como fazem os muros das cidades com papéis lambe-lambe e grafites de toda sorte.
Uma pintura como Amilcar descalço (2017) e a gravura Homenagem a São Paulo (2017), para além do dado que integra o suporte à imagem, revelam também o interesse do artista por rastros, vestígios dos muitos estados pelos quais a obra passou. Em Homenagem a São Paulo, por exemplo, as irregulares formas douradas que intervém aqui e ali na composição sugerem certa escavação na gravura, a forma irregular a um só tempo esconde e revela o que cobre. A colocação nessa gravura desse marcante material é memória desvelada, quase literalmente a revelação fotográfica de toda a experiência contida em uma memória. No caminho até a imagem final tanto da pintura Amilcar descalço quanto da gravura Homenagem a São Paulo, Antonio parece reafirmar uma potência de sua pesquisa, como se a caminhada até a obra de arte fosse, em verdade, a finalidade de sua produção. Colocações tão marcadas de campos de cor sugerem certa negação da possibilidade desse seu trabalho ser simplesmente o fetiche da peça finalizada ou o fetiche da imagem nele contida. Os diálogos marcados entre a imagem inicial e o trabalho final reiteram a importância dos processos de pesquisa e do contato epidérmico entre o artista e a sua obra.
Enquanto em suas pinturas de grandes dimensões o artista carioca explora duas tradições históricas de pintura para criar uma experiência entre o sujeito e a obra; em pinturas menores, como as caixas de madeira pintadas com tinta a óleo da série Pequenos olhos (2017), Antonio explora a especificidade característica desta diluição do pigmento. Os gestos do artista nessa série não atuam exatamente como pinceladas, aproximando-se cada vez mais às formas finais das pinturas. Eles prestam-se, antes, a ser como volumes de altos relevos, diferente da utilização esperada da tinta óleo. A escolha do suporte, madeira, subverte também a expectativa da aplicação de óleo, tipicamente sobre tela. Fato é que estes pequenos formatos revelam-se enquanto um momento intermediário no método tradicional da aplicação da tinta: a paleta de cores. Comumente, entre o esboço e a finalização da pintura com a tinta, o pintor abre a cor em uma paleta: depositando as tintas em pequenas porções sobre a chapa de madeira para, a seguir, criar diluições proporcionais entre as cores, portanto, tornando reprodutíveis com alguma facilidade cores únicas misturadas à necessidade da composição. A série Pequenos olhos, em alguma medida, é a paleta em que o artista abriu a cor e a imagem final formada na própria superfície onde acontece a diluição.
Assim como o francês ou o inglês, a pintura e a escultura são línguas bárbaras. Incapazes de diferenciar ser de estar, estas formas de comunicação selvagem concebem a experiência presente idêntica à toda a existência. Vivendo da vigília do observador, a pintura parece não existir no passado, nem no futuro, guardando sua capacidade de ser, sua permanência, na matéria e no presente. Este procedimento de aproximação entre o observador, sempre no presente, e a obra, impedida de comunicar-se sem um interlocutor, pode insinuar mais proximidade entre a imagem final de uma obra com seu valor intrínseco. Uma obra é um conjunto de valorações, atravessando valores compositivos, históricos, mercadológicos e narrativos; conquanto a manifestação mais palpável destas medidas imateriais talvez seja o valor em papel moeda que ela tem. A obra plástica de Antonio Bokel tem a vocação de aclamar todos os valores de uma peça, nas palavras do artista “foi ali que eu entendi que seguir adiante é um mergulho no infinito, uma incerteza constante que é guiada pela fé. Porque se você pensar muito em algumas coisas, você não faz. Independente da necessidade desta realização”.
A escultura do artista carioca revela a disposição a tomar de assalto o espaço. Como um pensador, Antonio revela a clareza no conjunto escultórico apresentado em Tudo que está coberto. As peças simulam a espontaneidade de um gesto impensado, como uma camisa deixada sobre qualquer apoio em um dia de calor, portanto, sua exposição se reporta à oposição organizado x desarrumado. Sendo a eternização de um gesto despretensioso, as esculturas desta exposição estimulam o observador a refletir sobre a potência e a fragilidade do intento artístico. A matéria do mundo e a matéria dos corpos escultóricos tornam ausente a figura humana, sem deixar de pontuar sua presença através da manufatura dos materiais. Veja-se, como exemplo, os panos de bronze cuidadosamente remexidos, como lençóis, lenços e outros panos de uso cotidiano ou ainda como uma tela antes de ser esticada e presa sobre um chassi. A peça O que está coberto (2017) consegue inverter a expectativa material, o prego, martelado na parede, parece segurar o peso de um pano derramado ao chão como em uma composição flamenca do século XVI, entretanto é impossível qualquer prego sustentar o peso do pano fundido em bronze, ao menos a expectativa da vista não corresponde à realidade material que é apresentada. Assim como uma obra, com frequência, é muito mais do que a aglomeração de materiais. Uma afirmação aparentemente frágil que conta com a cumplicidade entre o observador e a peça para revelar-se central na força social que a arte pode ter, uma discussão sutilmente trabalhada pelo artista a cada passo tomado em direção a esta exposição.
Corpos-bloco de concreto, de ar ou de pintura são cobertos por panos fundidos em bronze, estimulando o visitante a enxergar o invisível. “Parte do conceito em minha obra é o corpo [humano] como concreto. Literal e figurativamente”, disse o artista ao curador em uma parada de café antes de chegarem à fundição durante a pesquisa que se apresenta nesta mostra. Uma afirmação simples que revela a vontade do artista de expor aos olhos uma compreensão de narrativa de como se dão as relações e os indivíduos no estranho hábito de se viver. A matéria do mundo e dos corpos é a forma e o conteúdo da pesquisa do artista carioca e revelar um descontrole no gesto da pintura ou na simulação do movimento natural dos panos em escultura é, nesta exposição, uma alegoria para a vida, com seus espantos, expectativas e desencantos.
Em seu livro A história universal da infâmia, o argentino Jorge Luis Borges apresenta ao seu leitor o conto de um rei chinês que exige de seus cartógrafos a fatura de um mapa com proporção 1:1, ou seja, um mapa que tenha o mesmo tamanho do reino. Borges, em sua narrativa, está comentando sobre a competência humana de cobrir o mundo com a percepção dos eventos constatada pelo indivíduo. A obra plástica do carioca Antonio Bokel trabalha, aparentemente, dentro desse paradigma, expandindo-o dentro dos sujeitos que observam a presença da obra de arte. Este colocar-se diante da obra no presente e somente no presente, descartando a memória capaz de retroceder o indivíduo a um passado recente ou ancestral, impede que o sujeito seja apenas uma entidade que percebe o mundo, como seria o mapa em relação ao reino do conto argentino.
De maneira semelhante a Jorge Luis Borges, os trabalhos apresentados nesta exposição servem como gatilho para a questão: o que está coberto? Seriam outras formas, obliteradas por camadas de tinta ou bronze? Ou estariam cobertos os significados de um sistema de comunicação que não se reporta a palavras, mas que todos vivenciamos dentro da experiência humana? O conjunto escultórico trazido para a exposição Tudo que está coberto é capaz de revelar gestos banais, semelhantes aos gestos pictóricos que encontramos nas pinturas de Antonio, e indicam, na fundição eternizada em bronze, uma condição natural da obra de arte: sua transformação de objeto diante do olho à narrativa humana que por ela foi tocada. Entre a possibilidade da ficção de uma pintura misteriosa escondida pelo puro gesto à realidade material do objeto escultórico, uma vez mais o sujeito que toma contato com a obra de Antonio Bokel é colocado diante da pergunta: todos esses conteúdos, essas leituras e compreensões por ele exploradas são filhas do artista, do olho de quem observa ou da mente de quem de fato consegue acessar a somatória das dúvidas sob tudo que está coberto?
ANTONIO BOKEL
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Vanda Klabin
Observa-se nas obras de Antonio Bokel um constante cruzamento entre a arte e o tecido da vida urbana, como partes constitutivas do seu universo simbólico. Recorre a essa experiência da cidade como sequências existenciais – ali constrói o seu espaço referencial, ali parece inventar um território, ali pretende constituir uma extensão estética e espacial em uma dimensão mais ampla.
Nessa zona de interseção, está presente uma capacidade de improvisação poética a partir da assimilação dos mais variados materiais e suportes, tais como objetos enigmáticos, utensílios urbanos, inserção de letras, jogos de palavras ou fragmentos literários, que transitam nas pinturas murais, nas superfícies das telas, nas fotografias, nas esculturas ou nas instalações espaciais. Mas é na sua pintura que encontramos os acordes do seu campo de ação, indicativos de uma força integradora de suas inquietudes estéticas, ao equilibrar cores, formas e volumes em um mosaico de pinceladas rítmicas que trazem à tona as assimetrias do mundo.
Nesse conturbado território, o artista evoca uma reflexão sobre o espaço urbano contemporâneo. A sua produção artística não é um fenômeno isolado no ateliê, mas realiza a sua inscrição no mundo, em uma esfera pública, ao corporificar sua emergência nos muros da cidade – ambos acolhem simultaneamente sua prática pictórica e criam uma fusão entre a obra e o mundo.
Antonio Bokel reivindica um estar no mundo, aglutinar experiências, deixar traços visíveis no olhar público e não apenas entre quatro paredes. As suas obras são verdadeiros manifestos visuais e apesar de apresentarem uma rica diversidade, se agrupam através de uma linguagem comum, ao reivindicar um sentido plástico vinculado às imagens e dissonâncias da vida urbana.
A sua estratégia de leitura da figuração se manifesta através de aspectos provenientes da linguagem da arte pop, de uma visível influência de Andy Warhol, Jean Michel Basquiat e Keith Haring; no uso de elementos da cultura popular, como as ilustrações de revistas, jornais e suas expressivas composições – são portadores de uma impetuosidade emocional, trazem símbolos e motivos aleatórios com fortes conteúdos críticos, que são confrontadas com a crueza e rudeza dos muros urbanos. O artista converteu a pintura desenhada na sua principal técnica, ao dissolver os sistemas figurativos e redefinir as formas no espaço, produzindo uma nova geração de imagens. O desfazer progressivo passa a ser um exercício constante e a coexistência de formas díspares anuncia um pensamento de descontinuidade e ruídos visuais incorporados à sua cultura visual.
Sua pintura gestual, instintiva, espontânea, encontra suas raízes na sua admiração por certos artistas que pontuaram a vanguarda da contemporaneidade e passa a observar o vocabulário ligado à tradição construtiva. Entre as sua afinidades eletivas estão Amílcar de Castro e Mira Schendel. As formas, agora dispostas através de um jogo de derivações geométricas, estão associadas a uma natureza controlada, mais ordenada, diversa da urgência da pichação. A construção composicional traz uma matéria opaca, protagonizada pelo acréscimo de uma espiral de sucessivas camadas que criam uma superfície convertida na densidade de um muro, um interminável palimpsesto de cores acrescido pela presença de formas geometrizadas, que se avolumam através de tensões dinâmicas.
Antonio Bokel atua no contexto da fotografia e adota um procedimento que acumula uma espécie de olhar memorialista, ao capturar o instante primeiro da pichação direta nos muros da cidade. Bokel recupera a imagem por ele criada e a reinscreve através da recuperação fotográfica. Uma espécie de desconstrução de imagens que não parecem interessadas em se definir, como se fossem fragmentos em constante desconstrução, sempre no ambíguo limite da efemeridade e da permanência. Na sequência, o artista utiliza experiências gráficas ou a própria serigrafia e finaliza com a intervenção pictórica na conclusão do seu processo artístico.
ARTE COMO POR ACASO
Osvaldo Carvalho 2014
O sentido de um discurso emerge para além daquilo que significa cada uma das palavras nele contidas passando a se expressar na superfície do seu todo. Mas só depois de feito é que se pode compreendê-lo. Antonio Bokel é objetivamente explícito na concepção de sua ação Como Por Acaso em que sua sintaxe, disposta em um lambe-lambe no fundo da vitrine, é borrada de tinta em um ato único propiciado pelo artista. Mas as consequências desse gesto não ficam naquela crosta do acontecimento em si que constatamos em data e local sabidos. Na proposta de Bokel nos deparamos antes com a dúvida que com a certeza. Será que presenciamos um comparativo, isto é, a performance se deu ao acaso ou, ao contrário, houve a intenção de que se assemelhasse com o casual e assim agiu o artista em conformidade?
A grande charada está na relação lógica das palavras na frase que se ergue diante dos olhos em sua simplicidade colossal que parece não deixar dúvidas, e o expectador menos atento aceita sem muitas especulações. Haveríamos de nos preocupar com algo mais? Decerto que sim, porque vivemos um período em que justamente pequenos detalhes possuem grande potência, melhor dizendo, aquilo a que estabelecemos insignificâncias são justamente nossos piores deslizes. O que não pode ser maior que a montanha torna-se, paradoxalmente, imperceptível.
Façamos então uma breve investigação sobre o estabelecimento da linguagem em Como Por Acaso; há muita coisa que pode ser captada abstratamente quando falamos, mas no momento da produção / recepção de enunciados temos algo único: é a interpretação, interpretando nos comunicamos e dessa maneira somos levados a uma outra dimensão universal da comunicação: a criatividade. Aqui (em seu enunciado) o artista nos leva a refletir sobre a precariedade de nossa fala e sobre a árdua tarefa que é a formação de um discurso consistente. Com um balde de tinta que lança sobre o “acaso planejado” se mostra avesso ao ponto de vista que se satisfaz linguisticamente, aquele que aceita a tradição. Bokel é daqueles artistas atentos que acompanham a formação cultural de seu tempo, a gênese de cada uma de suas dimensões, à feição de um procedimento dialético em que nunca se deixa reduzir a qualquer formalização. É um inquieto.
Ao sermos confrontados com as possibilidades múltiplas da palavra é que percebemos a pertinência do processo poético-visual que a reinsere no campo da arte a qual, como dizia Michel Butor, derruba muros de conhecimento erguidos para separar a palavra da imagem. Nesse desenvolvimento o artista altera a referência alterando a verdade. Temos na vitrine o resultado de uma experimentação em que Bokel se submete à possibilidade do erro, não há uma real preocupação de fundamentação, mas concordância de que tudo está em constante movimento, tudo segue o fluxo de transformações da natureza.
A arte não é algo a serviço do entendimento, aliás, devemos desconfiar daqueles que prezam antes de tudo pela clareza, ela como recurso lógico não é um bem absoluto, mas um meio.
Osvaldo Carvalho
2014
A propaganda da alma é o negócio
Pedro Sánchez. Professor da Escola de Belas Artes da UFRJ e editor da revista Cabuloza Wild Life.
O mais engraçado é que, na real, quando me fazem a famigerada pergunta (“é grafite?”), eu, por meu turno – seja por pressa, sagacidade ou cinismo – normalmente respondo que sim. Depois, aos pouquinhos, vou tentando mostrar – ao policial, ao parente, ao crítico de arte, ao segurança do prédio ao lado ou ao puto do jornalista (esses, acreditem, são os mais difíceis de convencer) – que não. O mais legal é que, esses momentos em que você, então, vai falar sobre os pormenores e especificidades de uma prática, de uma poética, acabam te rendendo reflexões importantíssimas, porque, é claro, elas vêm no passo seguinte ao fazer.
A relação que Bokel estabelece com a rua, tema dessa publicação, remete ao começo de sua trajetória, à época de sua formação como designer e de suas primeiras irrupções no meio de moda, quando começou a produzir serigrafia e a imprimir lambe-lambe. Essa relação talvez seja uma constante em sua obra versátil e inquieta. Ela pode, num primeiro plano, ser entendida como processual. Diz respeito a esse acúmulo de ações, a essa sequência de intervenções que o muro, como suporte absorvente de inúmeras incursões anônimas, nos conta: o lambe-lambe rasgado sobre um grafite rateado por uma tag que cobriu um cartaz do qual ainda se lê algumas letras. São essas operações e esses signos que o artista leva consigo, documentando-os, incorporando-os em sua pintura, tematizando-os. “ACASO”, essa expressão manuseada concreta e conceitualmente evoca o tráfico de mão dupla entre espaço urbano e ateliê e esse entendimento primordial da rua como laboratório de experiências visuais.
Desse trânsito, gostaria de destacar os trabalhos intercalados ao longo de tempos que dialogam com o lambe-lambe de propaganda, essa potente manifestação visual do Rio de Janeiro, que muitos artistas de rua da cidade, reproduzindo o discurso oficial da uma administração municipal fascista, rechaçam, considerando-a mera “publicidade” e, portanto, ílegitima. Esse diálogo começa com a encomenda de cartazes autoriais (aqueles do homem com guarda-chuva, protegendo-se da mancha de elementos gráficos dentro da qual se destacam as letras, “B, O, K, E, L”, os primeiros trabalhos que vi do artista, antes de conhecê-lo pessoalmente) e culmina em intervenções sobre as rasuras feitas pela prefeitura no intuito de coibir a prática, nas quais se lia frases dúbias (“ante – o mar – antigo”, “uma – coisa – pura”; “colheita – do – acaso”), estranhas pois não anunciavam nada exatamente, ou melhor, divulgavam no máximo uma propaganda da alma. O artista se apropria do sistema de distribuição informal e da força visual desses cartazes impressos em serigrafia, potencializando visualmente o conflito territorial estabelecido.
Isso nos leva a perceber que, num segundo plano, a relação com o espaço urbano se mostra tática. Mais do que mero suporte, a rua é compreendida e tomada como um aparato visual, ou seja, como dispositivo que sustenta a interação entre um signo visual e o observador. A apropriação desse espaço leva à conquista de um meio de publicidade, no sentido de “tornar público”. Trata-se de uma ação territorial e estratégica. Uma ação de dupla resistência: frente às leis e normas que regem o sistema urbano a aquelas que regem o mundo da arte.
O que mais me impressiona no trabalho do Bokel não é a sua produtividade monstruosa e variada. Também não é essa espécie de angústia-zen que ele emana (embora isso me deixe bastante curioso). O que mais me impressiona é a capacidade que o artista tem de veicular, de fazer circular a sua produção quase compulsiva, a independência e autonomia que ele sustenta em relação ao circuito e cânones da arte contemporânea e, acima de tudo, a generosidade com que traz consigo, em suas empreitadas transculturais, uma galera. Bokel é um diplomata talentoso, um articulador, um criador de mundos.
As muitas edições do Espaço ATEMPORAL, os crowd funding, as publicações, os encontros, bate-papos, exposições, eventos culturais, shows, as múltiplas parcerias e conexões, traçadas em suas residências e andanças artísticas, e a recente abertura da Galeria Quintal, em parceria com João Sánchez e Marcelo Macedo, são algumas de suas ações no sentido de uma ativação cultural, processo que extrapola a atividade como artista e envolve a relação com diversas outras instâncias e agentes que colaboram, numa ação coletiva, para a existência desse lance que chamamos de arte.