Tudo que está coberto.
Paulo Gallina
Ao se refletir sobre o universo das artes sempre se está pensando em imagens, com frequência, entretanto, confunde-se uma obra de arte com a superfície da imagem. Talvez nas produções artísticas literárias ou musicais a relação entre a forma apresentada e o conteúdo discorrido não se reportem tanto às imagens sobre o papel. Com a produção em artes plásticas, no entanto, a imagem é reiteradamente tomada como sinônimo da superfície visível. Uma conclusão razoavelmente lógica, ainda que se revele como falsa no contexto da pesquisa e produção do artista carioca Antonio Bokel.
As pinturas de Antonio revelam prontamente ao olho um interesse gestual, como se linha a linha, campo de cor a campo de cor, o artista registrasse movimentos sem preocupar-se exatamente com a imagem resultante. Porque a imagem, neste caso, é o registro gestual e não a desculpa para o gesto acontecer. O conjunto de pinturas RIR (2017) é revelador deste momento da pesquisa de Antonio: ao intercalar telas de linho e algodão, o artista também aproxima e sobrepõe a gestualidade livre à dureza de formas geométricas lineares preenchidas por negrume. Quase que naturalmente, Antonio revela ao observador como ambas as atitudes são formadas pelos mesmos pincéis, sprays, espátulas e dedos que depositam as tintas. As cores são camadas cobrindo as superfícies, fingindo-se de formas geométricas sem a pretensão de aproximar-se da matemática analítica capaz de conceber e calcular os perímetros e as áreas. Isso porque a matemática é apenas uma uma forma mental de se abordar o mundo, conquanto o conjunto dos painéis RIR promove uma experiência a ser explorada enquanto momento fora do tempo: sem passado e sem futuro, o artista exige do observador que ele exista e note a existência da matéria posta à vista.
Não por acaso, em algumas das pinturas presentes nesta exposição, a superfície das telas, dos linhos, dos algodões e das chapas de madeira revelam-se expostas ao olhar, sem mesura ou tratamento. Esse procedimento insinua um pensamento amplo sobre o fazer do pintor: o suporte está dado assim como a cor, a linha e a imagem. Essas imagens não se permitem ser a simples ilusão de um retrato ou paisagem a ser reconhecido, pelo contrário, nas mãos de Antonio Bokel a pintura é matéria visível e cotidiana que retrata a narrativa dos dias sem marcar o presente no segundo milênio ou no terceiro da era cristã. A pesquisa que explora o gesto e seu registro em linha ou superfície colorida relaciona estes vestígios ao suporte que os recebe, como fazem os muros das cidades com papéis lambe-lambe e grafites de toda sorte.
Uma pintura como Amilcar descalço (2017) e a gravura Homenagem a São Paulo (2017), para além do dado que integra o suporte à imagem, revelam também o interesse do artista por rastros, vestígios dos muitos estados pelos quais a obra passou. Em Homenagem a São Paulo, por exemplo, as irregulares formas douradas que intervém aqui e ali na composição sugerem certa escavação na gravura, a forma irregular a um só tempo esconde e revela o que cobre. A colocação nessa gravura desse marcante material é memória desvelada, quase literalmente a revelação fotográfica de toda a experiência contida em uma memória. No caminho até a imagem final tanto da pintura Amilcar descalço quanto da gravura Homenagem a São Paulo, Antonio parece reafirmar uma potência de sua pesquisa, como se a caminhada até a obra de arte fosse, em verdade, a finalidade de sua produção. Colocações tão marcadas de campos de cor sugerem certa negação da possibilidade desse seu trabalho ser simplesmente o fetiche da peça finalizada ou o fetiche da imagem nele contida. Os diálogos marcados entre a imagem inicial e o trabalho final reiteram a importância dos processos de pesquisa e do contato epidérmico entre o artista e a sua obra.
Enquanto em suas pinturas de grandes dimensões o artista carioca explora duas tradições históricas de pintura para criar uma experiência entre o sujeito e a obra; em pinturas menores, como as caixas de madeira pintadas com tinta a óleo da série Pequenos olhos (2017), Antonio explora a especificidade característica desta diluição do pigmento. Os gestos do artista nessa série não atuam exatamente como pinceladas, aproximando-se cada vez mais às formas finais das pinturas. Eles prestam-se, antes, a ser como volumes de altos relevos, diferente da utilização esperada da tinta óleo. A escolha do suporte, madeira, subverte também a expectativa da aplicação de óleo, tipicamente sobre tela. Fato é que estes pequenos formatos revelam-se enquanto um momento intermediário no método tradicional da aplicação da tinta: a paleta de cores. Comumente, entre o esboço e a finalização da pintura com a tinta, o pintor abre a cor em uma paleta: depositando as tintas em pequenas porções sobre a chapa de madeira para, a seguir, criar diluições proporcionais entre as cores, portanto, tornando reprodutíveis com alguma facilidade cores únicas misturadas à necessidade da composição. A série Pequenos olhos, em alguma medida, é a paleta em que o artista abriu a cor e a imagem final formada na própria superfície onde acontece a diluição.
Assim como o francês ou o inglês, a pintura e a escultura são línguas bárbaras. Incapazes de diferenciar ser de estar, estas formas de comunicação selvagem concebem a experiência presente idêntica à toda a existência. Vivendo da vigília do observador, a pintura parece não existir no passado, nem no futuro, guardando sua capacidade de ser, sua permanência, na matéria e no presente. Este procedimento de aproximação entre o observador, sempre no presente, e a obra, impedida de comunicar-se sem um interlocutor, pode insinuar mais proximidade entre a imagem final de uma obra com seu valor intrínseco. Uma obra é um conjunto de valorações, atravessando valores compositivos, históricos, mercadológicos e narrativos; conquanto a manifestação mais palpável destas medidas imateriais talvez seja o valor em papel moeda que ela tem. A obra plástica de Antonio Bokel tem a vocação de aclamar todos os valores de uma peça, nas palavras do artista “foi ali que eu entendi que seguir adiante é um mergulho no infinito, uma incerteza constante que é guiada pela fé. Porque se você pensar muito em algumas coisas, você não faz. Independente da necessidade desta realização”.
A escultura do artista carioca revela a disposição a tomar de assalto o espaço. Como um pensador, Antonio revela a clareza no conjunto escultórico apresentado em Tudo que está coberto. As peças simulam a espontaneidade de um gesto impensado, como uma camisa deixada sobre qualquer apoio em um dia de calor, portanto, sua exposição se reporta à oposição organizado x desarrumado. Sendo a eternização de um gesto despretensioso, as esculturas desta exposição estimulam o observador a refletir sobre a potência e a fragilidade do intento artístico. A matéria do mundo e a matéria dos corpos escultóricos tornam ausente a figura humana, sem deixar de pontuar sua presença através da manufatura dos materiais. Veja-se, como exemplo, os panos de bronze cuidadosamente remexidos, como lençóis, lenços e outros panos de uso cotidiano ou ainda como uma tela antes de ser esticada e presa sobre um chassi. A peça O que está coberto (2017) consegue inverter a expectativa material, o prego, martelado na parede, parece segurar o peso de um pano derramado ao chão como em uma composição flamenca do século XVI, entretanto é impossível qualquer prego sustentar o peso do pano fundido em bronze, ao menos a expectativa da vista não corresponde à realidade material que é apresentada. Assim como uma obra, com frequência, é muito mais do que a aglomeração de materiais. Uma afirmação aparentemente frágil que conta com a cumplicidade entre o observador e a peça para revelar-se central na força social que a arte pode ter, uma discussão sutilmente trabalhada pelo artista a cada passo tomado em direção a esta exposição.
Corpos-bloco de concreto, de ar ou de pintura são cobertos por panos fundidos em bronze, estimulando o visitante a enxergar o invisível. “Parte do conceito em minha obra é o corpo [humano] como concreto. Literal e figurativamente”, disse o artista ao curador em uma parada de café antes de chegarem à fundição durante a pesquisa que se apresenta nesta mostra. Uma afirmação simples que revela a vontade do artista de expor aos olhos uma compreensão de narrativa de como se dão as relações e os indivíduos no estranho hábito de se viver. A matéria do mundo e dos corpos é a forma e o conteúdo da pesquisa do artista carioca e revelar um descontrole no gesto da pintura ou na simulação do movimento natural dos panos em escultura é, nesta exposição, uma alegoria para a vida, com seus espantos, expectativas e desencantos.
Em seu livro A história universal da infâmia, o argentino Jorge Luis Borges apresenta ao seu leitor o conto de um rei chinês que exige de seus cartógrafos a fatura de um mapa com proporção 1:1, ou seja, um mapa que tenha o mesmo tamanho do reino. Borges, em sua narrativa, está comentando sobre a competência humana de cobrir o mundo com a percepção dos eventos constatada pelo indivíduo. A obra plástica do carioca Antonio Bokel trabalha, aparentemente, dentro desse paradigma, expandindo-o dentro dos sujeitos que observam a presença da obra de arte. Este colocar-se diante da obra no presente e somente no presente, descartando a memória capaz de retroceder o indivíduo a um passado recente ou ancestral, impede que o sujeito seja apenas uma entidade que percebe o mundo, como seria o mapa em relação ao reino do conto argentino.
De maneira semelhante a Jorge Luis Borges, os trabalhos apresentados nesta exposição servem como gatilho para a questão: o que está coberto? Seriam outras formas, obliteradas por camadas de tinta ou bronze? Ou estariam cobertos os significados de um sistema de comunicação que não se reporta a palavras, mas que todos vivenciamos dentro da experiência humana? O conjunto escultórico trazido para a exposição Tudo que está coberto é capaz de revelar gestos banais, semelhantes aos gestos pictóricos que encontramos nas pinturas de Antonio, e indicam, na fundição eternizada em bronze, uma condição natural da obra de arte: sua transformação de objeto diante do olho à narrativa humana que por ela foi tocada. Entre a possibilidade da ficção de uma pintura misteriosa escondida pelo puro gesto à realidade material do objeto escultórico, uma vez mais o sujeito que toma contato com a obra de Antonio Bokel é colocado diante da pergunta: todos esses conteúdos, essas leituras e compreensões por ele exploradas são filhas do artista, do olho de quem observa ou da mente de quem de fato consegue acessar a somatória das dúvidas sob tudo que está coberto?