Cruzes e Credos

CRUZES E CREDOS / ANTONIO BOKEL
A simbologia da cruz concentra em si a pura universalidade, a síntese entre os dualismos mais elementares: céu e terra, tempo e espaço; a concordância de coordenadas temporais e transcendentais centralizadas no cruzamento dos seus dois braços. Ela aponta simultaneamente para todos os pontos cardeais se colocando como centro mediador, por natureza, na reunião permanente entre o universo e o humano.
Na tradição cristã funciona como símbolo que totaliza a história da salvação. Na cruz cristo morreu e ressuscitou, mas, mais que a figura de cristo, a cruz resume o acontecimento redentor, a universalização da mensagem da ressurreição, a projeção da história da humanidade parida de um sacrifício.
Entretanto, seu uso não se restringe às narrativas religiosas. Como toda grande idéia, há sempre espaço para reapropriações e representações. É dessa profundidade pictória que se serve Antonio Bokel. Da orientação articulada na imagem da cruz, Bokel desacredita a morada do ser como um refúgio sólido, pondo em questão a ambigüidade entre sagrado e profano, pecado e o sacrifício, servindo de mediador entre fenda de uma incerteza radical e a nossa existência agarrada às narrativas do cotidiano.
O homem vitruviano de Leonardo, e sua perfeição de formas e proporções, é desfigurado e desconstruído. A analogia proposta pela centralidade do homem-em-formato-de-cruz, no seu entusiasmo antropocêntrico, perde lugar para a espontaneidade da ressonância do caos em Bokel. Mas não se trata de imperícia ou acaso. Aqui ele traça o imperativo do artista como síntese entre o hemisfério da ficção, que sustenta nossa presença medíocre-mundana, e a força criativa – que põe em cheque a argamassa existencial dos cientistas da vida (pais, padres, professores, psicólogos), celebrando o encontro com o inédito. Desse encontro brota a violência expressiva que desconstrói os riscos rasos e precisos, tais como o de Da Vinci, que pensavam representar a vida como ela é. A certeza é, portanto, esmagada pela simplicidade daquele que recoloca o ser como cenário de uma pergunta, não de uma explicação.